"Perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando". Clarice Lispector

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

"Escritores criativos e devaneios"


Meia-noite em Paris (Midnight in Paris, EUA, 2011)


Filme de Woody Allen. Com: Owen Wilson, Rachel McAdams, Kathy Bates, Marion Cotillard, Adrien Brody, Carla Bruni, Yves Heck, Tom Hiddleston, Adrien de Van, Corey Stoll, Alison Pill, Marcial Di Fonzo Bo, David Lowe.

Freud dizia que “o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une”. Ao invés de uma temporalidade contínua – passado, em seguida o presente e posteriormente o futuro – temos uma descontinuidade, ou seja, uma situação motivadora que despertou o desejo no presente retrocede a uma experiência anterior do passado, onde esse desejo fora realizado, criando uma situação referente ao futuro que representa a realização do desejo. E assim viajamos no tempo! Disso, podemos concluir que sem desejo não há futuro.

Em “Meia-noite em Paris”, Woody Allen leva a idéia de viagem no tempo às últimas conseqüências! Ele nos conta a história de um roteirista, Gil Pender (na interpretação irretocável de Owen Wilson), que está disposto a largar tudo (leia-se a vida segura e acomodada de roteirista de sucesso em Hollywood) para realizar seu grande sonho: escrever um romance em Paris.

Em seu caminho, Gil encontra alguns de seus heróis das artes: Scott Fitzgerald, em sua problemática parceria amorosa e artística com Zelda Fitzgerald; Cole Porter e sua música encantadora; Ernest Hemingway de um jeito que faz crer no que Gertrude Stein afirmou sobre ele: “Mas que grande livro daria a verdadeira história de Hemingway, não as que ele escreve, mas as confissões do verdadeiro Ernest Hemingway”; Salvador Dalí, numa interpretação impagável de Adrien Brody; Luis Buñuel – numa bela composição de personagem por Adrien de Van, apresentando o olhar de assombro diante do mundo daquele jovem cineasta, como podemos observar na cena em que questiona Gil a propósito de sua sugestão para filmar aquele que seria O Anjo Exterminador.

Temos ainda, Gertrud Stein (vivida de forma cuidadosa e doce por Kathy Bates), como catalisadora de toda aquela efervescência criativa. Caberá a ela ser a primeira leitora do romance de Gil, tanto o livro quanto a relação amorosa. Pablo Picasso também aparece, de forma passional. A lista inclui ainda: Henri Matisse, Man Ray, Joséphine Baker, Paul Gauguin, T.S. Eliot, Henri de Toulouse-Lautrec.

Na primeira volta ao passado de seus sonhos, Gil entra numa festa, acompanhado pelo casal Fitzgerald, e encontra Cole Porter ao piano tocando Let’s do It. Simplesmente lindo! Dá para se sentir fazendo parte daquele "sonho"! A música de Cole Porter será o fio condutor capaz de fazer Gil reencontrar seu presente: a possibilidade de amar, através do encontro com uma moça que trabalhava em uma loja de antiguidades. O passado aparece nos mínimos detalhes, fica por ali, rondando e encantando Gil.

Hemingway fala para Gil que, para amar e escrever, é preciso não ter medo da morte. Ao final, ele não só escreve o romance, como consegue viver um romance. Ele já não tinha mais tanto medo da morte, ou dito de outra forma, não tinha medo de seu desejo, de mudar e iniciar uma nova vida, mais condizente com seu desejo, em outro lugar. Assim, Gil pode finalmente vislumbrar o futuro. Final feliz, tempo bom com céu azul? Não, sujeito a chuvas e trovoadas! Todavia, Gil pode se arriscar na chuva e sentir a beleza que também há nela.

Você, leitor, gostaria de ter vivido nesta época? Não se preocupe, ainda é possível conhecer todos esses incríveis artistas. Eles, através de sua obra, são imortais! Para quem ficou com um gostinho de quero mais, recomendo a leitura de Autobiografia de Alice B. Toklas de Gertrude Stein, onde ela nos convida a entrar em sua casa na Rue de Fleurus nº 27 Paris, ponto de encontro com Hemingway, Fitzgerald, Ezra Pound, Jean Cocteau, Juan Gris, Picasso e Matisse, entre outros.

sábado, 29 de janeiro de 2011

A origem dos sonhos


A Origem (Inception, EUA, 2010)

Dirigido e escrito por Christopher Nolan: Leonardo DiCaprio, Ken Watanabe, Joseph Gordon-Levitt, Cillian Murphy, Marion Cotillard, Tom Hardy, Ellen Page, Michael Caine, Dileep Rao, Tom Berenger.



Vendo a imperdível exposição “O mundo mágico de Escher” no CCBB-RJ, tive vontade de comentar o maravilhoso filme de Christopher Nolan “A Origem”. Tem tudo a ver! Não por acaso, o diretor partiu do quadro “Relatividade” de Escher para montar um mosaico cinematográfico, no qual o sonho impera. Se naquele quadro, a cada ponto de vista, muda a percepção da situação, bagunçando incrivelmente as leis da física, neste filme sentimos a mesma vertigem! A trama tem como mote a idéia de manipulação dos sonhos quando pessoas dividem o mesmo espaço onírico, dando-lhes a oportunidade de acessar o inconsciente de alguém.

Dom Cobb é um ladrão de sonhos, especializado em extrair segredos das mentes de suas vítimas. Porém é desafiado a inserir, plantar uma idéia na cabeça de uma pessoa, o que ele aceita não sem hesitar, pois sabe que uma idéia é o parasita mais resistente e é altamente contagiosa. Quando ela ganha força no cérebro é quase impossível erradicá-la. Cresce a partir de pequenas sementes, ou te define ou te destrói. Vemos os dois exemplos no filme: como uma idéia inserida na mente de Fischer, o alvo da equipe, acabou definindo sua vida; por outro lado, a idéia de que este mundo não é real, acabou destruindo Mal, o amor de Cobb.

“Você está tão seguro do teu mundo? Acha que isto é real”? Pergunta Mal para Cobb. O que é real? O que é sonho? Até onde podemos confiar em nossa percepção do mundo a nossa volta? Escher “brincou” com estes conceitos aproximando a realidade do sonho de tal maneira que é quase impossível distingui-los. Na verdade, é esta mesma a intenção! Nolan a seguiu à risca. No filme, a equipe têm alguns truques para fazer seu teste de realidade. Podemos ler “A origem” do título em português como: “Você se lembra do início do sonho?” Não e aí está uma forma de diferenciar sonho e realidade, além do totem que cada um da equipe utiliza.

Veja “Metamorfose II” do Escher, como do caos pode nascer a harmonia. Abelhas que viram pássaros e peixes, pássaros que se transformam numa cidade, a qual em seguida vira um tabuleiro de xadrez. Lembra uma sessão de psicanálise, onde aparentemente algo que não tem nada a ver se liga a outro significante que vai dar sentido ao dito anterior. Só na aparência que nada tem a ver, mas basta um olhar mais atento para descobrir o que os une. Eis a arquitetura de um sonho! Portanto não estranhe se achar o filme um pouco confuso, sem sentido. Os sonhos são assim, mas apenas aparentemente. E é como um sonho que este filme deve ser visto. Nolan, assim como Escher, consegue a incrível proeza de nos fazer sonhar.