"Perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando". Clarice Lispector

domingo, 2 de maio de 2010

Quem é Alice?

Alice no País das Maravilhas (Alice in Wonderland, EUA, 2010)


Dirigido por Tim Burton, com roteiro de Linda Woolverton, baseado no livro de Lewis Carroll. Com: Mia Wasikowska, Johnny Depp, Anne Hathaway, Helena Bonham Carter, Matt Lucas, Crispin Glover, Marton Csokas, e as vozes de: Alan Rickman, Christopher Lee, Stephen Fry, Timothy Spall, Michael Sheen, Barbara Windsor, Michael Gough e Imelda Staunton.

“Quem é você”? Pergunta dirigida à Alice é o fio condutor do excelente “Alice no País das Maravilhas”. Sim, é a Alice de Lewis Carroll, o mestre do nonsense que nos brindou com uma história realmente maravilhosa, mas ela é vista pelo olhar de Tim Burton, o cineasta que consegue enxergar o mundo com estranhamento, tornando as coisas mais banais, incríveis. Foi um feliz encontro!

Fugindo de um noivado arranjado e das imposições da sociedade de sua época, Alice segue novamente o Coelho Branco e cai no mundo subterrâneo – O 3D realmente deu a sensação de nos transportar para o País das Maravilhas. Caímos no buraco junto com Alice! – dominado pela terrível Rainha Vermelha que não se cansa de ordenar: “Cortem-lhe a cabeça”. Lá descobre que deverá derrotar o temível Jaguadarte[1] a fim de restabelecer o reinado da querida Rainha Branca. No fantástico País das Maravilhas ela reencontra o encantador Gato de Cheshire, os gêmeos Tweedledee e Tweedledum, a enlouquecida Lebre de Março, o Chapeleiro Maluco... mas senti falta do mestre Humpty Dumpty!

A heroína original era uma menina de 10 anos, inspirada em Alice Liddell, por quem Carroll nutria grande afeição. No filme, Alice não é mais criança – a personagem tem 19 anos – mas seu principal conflito ainda é o da identidade. Diante da pergunta da Lagarta Absolem: “Quem é você”, ela responde simplesmente: “Alice”. Ao contrário da menina que dizia não saber ao certo, uma vez que tinha mudado muito desde a queda no País das Maravilhas. Mais velha, mostra uma faceta frágil e impotente, pois havia se esquecido como era ser Alice, com sua grandiosidade e impetuosidade.

Alice tem sonhos recorrentes com o País das Maravilhas, angustia-se e teme enlouquecer. Pergunta ao pai se está ficando louca e ele responde: “Sim, você está louca. Mas vou te contar um segredo. As melhores pessoas são”. São eles que denunciam o absurdo da vida. Se no livro, o Chapeleiro afirma com satisfação que lá, no País das Maravilhas, todos são loucos, aqui ele pergunta com pesar se está enlouquecendo, ao que a jovem afirma da mesma forma que seu pai um dia lhe respondeu, sem temer, pois ela acredita que as melhores pessoas são os loucos.

É de arrepiar quando o Chapeleiro declama o poema Jaguadarte de Lewis Carroll: “Era briluz. As lesmolisas touvas roldavam e reviam nos gramilvos. Estavam mimsicais as pintalouvas, E os momirratos davam grilvos”. Ele fala a Alice que é sobre ela, conta a história de seu triunfo sobre o temível Jaguadarte. Alice resiste, diz que não matará, está confusa sobre quem é de verdade. Ora se sente pequena, impotente, acreditando que não conseguirá acabar com o mostro, Ora se sente grande e acredita em coisa impossíveis. O Chapeleiro não a reconhece mais, afirma que a menina Alice de antes era grandiosa.

A questão é: “Quem é você?”, como deixa bem claro a Lagarta para Alice. A jovem encontra a si mesma no underground, como canta Avril Lavigne na música tema da personagem. Esta questão faz Alice pensar e é só quando ela consegue assumir sua responsabilidade como sujeito que consegue finalmente enfrentar o terrível Jaguadarte, cortando-lhe a cabeça. Com o passar do tempo, vemos Alice realmente crescer, tornar-se mais corajosa e determinada. Aqui já não é a menina que pergunta assustada para o Gato de Cheshire: “Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui?” Ela afirma sua posição de sujeito: “Eu crio o caminho!” A transformação porque passa Absolem, de lagarta a borboleta, é um belo espelho das mudanças atravessadas por Alice. Ao vê-lo no casulo, prestes a se transformar em borboleta, a jovem consegue recuperar a Alice perdida, nomeando-se Alice Kingsley. Ela aprende que é preciso acreditar em coisas impossíveis, pois só assim elas se tornam possíveis e assim consegue cumprir sua missão.

“Por que um corvo se parece com uma escrivaninha?” é o enigma proposto pelo Chapeleiro Maluco à Alice, mas o maior de todos é “Quem é Alice?” Talvez nunca respondamos a essa pergunta, mesmo porque qualquer resposta não daria conta do enigma insolúvel existencial de cada sujeito.

[1] Tradução de Jabberwacky de Lewis Carroll por Augusto de Campos.