"Perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando". Clarice Lispector

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Sede de vida

Na Natureza Selvagem (Into the Wild, EUA, 2007)
Dirigido por Sean Penn que também assinou o roteiro. Com: Emile Hirsch, Catherine Keener, Jena Malone, Vince Vaughn, Hal Holbrook, Kristen Stewart, Brian Dierker, William Hurt, Marcia Gay Harden.

Conheci a história real de Christopher McCandless através do livro Na Natureza Selvagem que deu origem ao filme de mesmo nome. Fiquei encantada por aquele jovem! Isso foi em 1997 e na época pensei que, se fosse cineasta, filmaria essa história. Dez anos depois, eis que Sean Penn, com delicadeza e sensibilidade, a leva para as telas do cinema. Chris, como era chamado por seus familiares, abandona seu nome e a vida confortável e segura da classe média americana, após ter terminado a faculdade, e segue em busca de um sonho: atravessar a natureza selvagem. É a jornada do herói!
A emocionante trilha sonora e as belas imagens do Alasca dão ainda mais vida a uma história cujo fim mortífero só ratifica o cruzamento íntimo entre vida e morte, já que ele encontrou a morte, mas estava em busca da vida, querendo chegar, como James Joyce (um de seus heróis literários), “perto do coração selvagem da vida”. Na contingência de um encontro ele é capaz de afetar e ser afetado pelas pessoas que descobre em seu caminho. Embora esteja só no meio de muitos, é necessário se afastar, se descontaminar da forte presença do outro e ir para o desértico Alasca, para se dar conta da importância desses encontros. “Para não mais ser envenenado pela civilização, ele foge e caminha sozinho sobre a terra para perder-se na natureza”, escreve Chris – agora assumindo o codinome Alexander Supertramp (algo como "super vagabundo", o que sugere errância) – numa folha de compensado que tapava uma janela do ônibus que lhe serviu de abrigo no Alasca.
A aventura no Alasca fora inspirada em grandes escritores, especialmente Leon Tolstói, Henry David Thoreau e Jack London, que enfrentaram a natureza selvagem, sobretudo encararam sua própria ilha, ao olhar para dentro de si mesmo. Porém, para Chris, a literatura era mais do que uma simples leitura, era a própria vida, era uma espécie de “manual de sobrevivência na selva". Ele queria experimentar, no real, aquilo que lia e por isso decide realizar a grande aventura no Alasca, caminhando para dentro da natureza selvagem.
Sua jornada é marcada por vários encontros, pessoas que tiveram suas vidas transformadas por sua presença. Embora, possa parecer, à primeira vista, que o jovem queria a todo custo se livrar da civilização, especialmente das pessoas, não é isso que ocorre. Muito pelo contrário, ele demonstra ter um interesse genuíno pelas pessoas. Só não consegue chegar muito perto, quando isso acontece, ele rompe e afasta-se. Ao final do filme é tocado um trecho da bela música "Guaranteed" de Eddie Vedder que poderia ter sido cantada pelo protagonista: "Don't come closer or I'll have to go (...) Consider me a satellite, forever orbiting. I knew all the rules, but the rules did not know me”[1]. Para Chris, o laço social constituía uma experiência dolorosa. Tanto quanto àquela do famoso símile schoppenhauriano dos porcos-espinhos citado por Freud em “Psicologia de Grupo e a análise do Ego”, na qual um grupo de porcos-espinhos para não morrerem de frio se alinham. Unindo-se seus espinhos os machucavam, por isso não podiam ficar perto uns dos outros. Porém, aos se afastarem, voltavam ao problema inicial e precisavam de calor. Daí fizeram um movimento de ir e voltar até conseguir um ponto de equilíbrio necessário para conviverem.Ao final de sua jornada, o jovem escreve destacadamente: Felicidade só real quando compartilhada. Essa é a frase fica rolando durante muito tempo na cabeça do espectador que, incrédulo, vê o jovem fazer sua derradeira viagem. Há um paradoxo aí, uma vez que a felicidade para ser real exige o compartilhamento com o outro e isso causa mal-estar. Ao romper o laço social, Christopher faz uma separação em ato, total, fica sozinho na natureza selvagem do Alasca e assim como os porcos-espinhos ao se afastarem demais dos outros, também morre. Apesar de se dar conta de que precisava voltar, isto já não era mais possível. Era necessário que encontrasse uma distância intermediária, nem tão perto, nem tão longe, entre ele e as pessoas ao seu redor para poder viver de forma prazeirosa. Eis a árdua tarefa que um encontro com suas infinitas possibilidades nos coloca diariamente!
[1] “Não se aproxime ou terei que ir. (...) Considere-me um satélite, sempre orbitando. Eu conheço todas as regras, mas as regras não me conhecem”.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Humano, demasiadamente humano

Deixa ela entrar (Låt den rätte komma in, Suécia, 2008)

Dirigido por Tomas Alfredson. Roteiro de John Ajvide Lindqvist. Com: Kåre Hedebrant, Lina Leandersson, Peter Carlberg, Per Ragnar, Karin Bergquist, Henrik Dahl.

Não, não é um filme de terror! É difícil enquadrá-lo numa categoria e talvez nem seja necessário. O problema de rotularmos um filme é que acabamos por limitá-lo a um aspecto dentro de um universo inteiro e infinito de possibilidades. Basta sabermos que se trata de arte cinematográfica da melhor qualidade. A trama se passa na Suécia, em uma região gélida que ajuda a compor um belo cenário para a relação que será estabelecida entre os jovens de 12 anos: Oskar e Eli. O menino nos é apresentado como solitário, mas será mesmo? Do ponto de vista de quem o rodeia, por exemplo, seus colegas de escola podem vê-lo assim, porém será que ele se vê ou se coloca assim? Não me parece que Oskar seja solitário, voltado totalmente para si, mas está sozinho numa sociedade que já não lembra mais o que é sentir. Sua aproximação de Eli vem comprovar que ele não é tão solitário. Entretanto, não precisa ser amigo de todo mundo, basta travar uma verdadeira relação amorosa com alguém especial, sensível como ele. Porque pessoas assim sabem o quão intenso e forte pode ser o laço que une um sujeito a outro. Oskar é vítima de bullying na escola, frágil e sensível. Enquanto Eli (que afirma não ser uma garota) é um verdadeiro enigma! Ficamos sabendo que é uma vampira, forte, determinada e corajosa. Seu encontro com Oskar irá mudar a vida dele de uma forma que só os encontros felizes podem fazer.
Em um desses encontros, na cena em que Oskar lhe pergunta se não está sentindo frio, Eli afirma que faz tempo que não sabe o que é sentir. Sentir para ela é tão insuportavelmente doloroso que o melhor é esquecer! Depois, na cena que explica o título do filme, vemos o que acontece quando ela sente algo. Uma das cenas mais belas que já vi, marcada pela doçura, delicadeza e encanto dos pequenos gestos, com um silêncio recheado de palavras não ditas. O amor para ela pode ser fatal e não sentir, uma condição necessária para se proteger, conseguindo o que necessita para sobreviver: o sangue. O vampirismo aparece aqui muito mais para nos lembrar de nossa condição humana, demasiadamente humana.
Trata-se de uma história de amor trágica! Eli condenada a uma eterna existência fria e sombria, sem poder sentir e sem conseguir suportar a luz, enquanto Oskar é tocado pela finitude e pela paixão. O garoto é extramamente sensível e, de certa forma, isso também é insuportável para ele porque o deixa muito vulnerável.
É possível que Oskar tenha o mesmo fim de Håkan - fiel escudeiro de Eli, aquele que lhe oferece o sangue de que necessita para sobreviver -, mas a efemeridade da vida não retira dela sua beleza. Sangue como símbolo da vida, o qual é bombeado através do coração para todo o corpo. Coração como metáfora do que é sentir!
Um encontro, apenas um encontro com as infinitas possibilidades que ele comporta, mesmo que dure somente um belo instante como: o pulsar do coração na cena em que vemos os jovens dormindo lado a lado, um toque delicado no corpo, ou simplesmente o som estalido da língua sugerindo "sim, eu deixo você entrar na minha vida" porque é preciso "ir e viver"!